segunda-feira, 11 de maio de 2015

“Ao arrancarem meu crachá, senti como se estivessem arrancando a minha pele”

Por Claudia Giudice   

11 horas da manhã do dia 13 de agosto de 2014. Não era sexta-feira, mas pareceu ser. Eu estava sentada na plateia do Fórum Exame Brasil 2020, no Hotel Unique, em São Paulo. Aguardava a palestra do candidato à presidência da República pelo PSB, Eduardo Campos, marcada para as 12h10. 

Com a brochura do evento na mão, passou um flash pela minha mente. O que faço se perder o emprego? Era uma premonição. Mas eu ainda não sabia disso. Comecei a escrever num caderno em branco enquanto o Eduardo Giannetti da Fonseca falava. 

Na primeira página, as minhas receitas: alugueis de imóveis, pró-labore da minha pousada na Bahia, pensão do meu filho, investimentos e indenização. Na folha seguinte os custos fixos: escola e inglês do meu filho, clube, plano de saúde, ajuda de custo para meus pais, salário da Maria, salário da faxineira, internet, Netflix, luz, gás, condomínio, IPTU, alimentação, terapia, gasolina, IPVA, viagens. Na folha seguinte, a conta de padaria mostrava que ia faltar dinheiro. Comecei a cortar. 

E numa outra folha listei alguns desejos: 
1. Doutorado na USP, 
2. Projeto Professora, 
3. Projeto Consultoria, 
4. Projeto Escritora, 
5. Projeto Comunicação e
 6. Projeto Aldeia Hippie. 

Não fui adiante na lista de projetos porque um zunzunzum tomou conta da sala. Um avião havia caído em Santos. Um post na rede social dizia que Eduardo Campos estava a bordo. Fechei o caderno e lembrei que um dia eu fora repórter. Comecei a apurar. Liguei para amigos que faziam a campanha dele. Era verdade. Soube depois que Eduardo havia desistido de participar do Fórum. Mudou de roteiro e escolheu viajar de avião para ao litoral paulista. Saí do evento abalada com sua morte e voltei para o escritório, na Marginal Pinheiros, em São Paulo. Era diretora de uma grande unidade de negócios na maior editora do país. Tinha muito serviço me esperando e esqueci a premonição, que ficou anotada à caneta no caderninho. 11 horas da manhã de 25 de agosto de 2014. 

Doze dias depois. Estava na minha mesa. Era o dia D na empresa. Sabia que muitas pessoas seriam demitidas. Havia falado com minha chefe e ela estava tranquila. Tinha estado com um acionista e com o presidente. Feedbacks positivos. Toca o telefone. O presidente executivo, que assumira há pouco tempo, e fora meu par dois anos antes, queria falar comigo. Subi, entrei em sua sala sorrindo e ouvi o que ele tinha a me dizer: Claudia, você está sendo demitida. Consegui manter o sorriso no rosto, acho. E apenas perguntei: Onde eu assino? Saí da sala com a folha assinada na mão. Tremia junto com ela. Fui direto falar com minha chefe. Perguntar por que ela não me demitiu. Fui demitida, eu disse. Eu também, ela respondeu. Eu, pelo presidente executivo. Minha chefe pelo chefe dele, como mandava a etiqueta hierárquica. 

Desci para o meu andar, reuni as redações num canto – naquele momento eu respondia por 24 marcas e liderava mais de 200 pessoas – e dei a notícia para todos de uma só vez para evitar que o falatório ficasse ainda maior. Um discurso rápido. Agradeci a todos e fui cuidar da burocracia. Meu desejo era ir embora dali o mais rápido possível. Sentia alívio, porque estava vivendo sob enorme pressão já há muitos meses. No ano anterior, não havia entregue o resultado prometido, pela primeira vez em 10 anos ocupando em cargos de direção – eu estava na profissão há 30 anos e na empresa desde 1990, com uma breve interrupção. Naquele duro ano de 2014, o cenário era ainda pior. Depois de oito meses de trabalho intenso, acumulávamos perdas e mais perdas. Era boa a sensação de saber que não precisaria mais nadar contra aquela correnteza. 

Aí lembrei da premonição de duas semanas antes. Preciso encontrar aquele caderno para ver quais eram os meus projetos. Ainda com a adrenalina nas alturas, dei a notícia à família – sempre uma missão árdua. Contei, numa raquetada, para meu pai: Fui demitida, preciso que você pegue o Chico, seu neto, na escola. O resto do dia foi de falar com gente: um zilhão de ligações, e-mails, zap-zaps, conversas com amigos e ex-colegas. Falar faz bem nessa hora. Espanta os pensamentos cáusticos, distrai a dor, prolonga o estofo oferecido pela adrenalina. 

Era neófita no assunto. Nunca havia sido demitida. Tive sorte. Tinha uma viagem de férias marcada para os Estados Unidos naquela semana. Fui e me fez bem. Escapei da falta de rotina dos primeiros dias sem crachá. Escapei da pressão familiar e dos amigos, que querem te deixar bem a qualquer preço – e, sem querer acabam escarafunchando a ferida. Lá, bem longe de casa, desabei pela primeira vez. Chorei feito criança pequena, abandonada, no escuro. Não era medo. Nem necessidade. Não tinha urgência de arrumar outro emprego. Era a dor de perder algo que eu amava. Era a dor de ter sido rejeitada. Sofria porque, ao arrancarem meu crachá de 23 anos, arrancaram junto a minha pele. Estava em carne viva. Doía, latejava, ardia. Por que eu? Por que não me quiseram mais? Por que me descartaram? Por que me despiram da minha identidade? Hoje, oito meses depois, sei exatamente os motivos e entendo a escolha. Talvez fizesse o mesmo no lugar deles, apesar de continuar me achando uma boa profissional, comprometida, uma boa líder e uma boa gestora. Mas, como dizem por aí, quem vive de passado é museu. 

Declinei a vaga oferecida na ala dos dinossauros e fui, como dizem lá na Bahia, procurar a minha melhora. 

No último dia 6 de abril, já de pele nova, entreguei o arquivo do meu livro Vida Sem Crachá para a Ediouro, que deve lançá-lo no segundo semestre. Nele conto como processei a saída da vida executiva e a perda de coisas como holerite, email e celular da firma. E principalmente, narro histórias inspiradoras de gente que, como eu, partiu para um plano B. Tem comédia, tragédia e muitas ideias para começar de novo. Espero, sinceramente, ajudar os próximos da fila a enfrentar esse momento tão difícil e, ao mesmo tempo, tão disruptivo, tão revolucionário, tão transformador. 

Desde dezembro, assumi minha pousada pé na areia, A Capela, com 14 apartamentos, no litoral Norte de Salvador, como meu plano A. O primeiro trimestre de 2015 foi sensacional. Crescemos 80% relação ao ano anterior graças ao aumento do número de apartamentos e uma taxa de ocupação espetacular. Foi o melhor verão da minha vida. Trabalhei, aprendi, me diverti e, sobretudo, conheci pessoas e ouvi histórias incríveis. Fui, dia a dia, experimentando o prazer de, pela primeira vez na vida, ser dona da minha força de trabalho e da minha agenda. Decidi que não queria voltar a ter crachá e parei de procurar emprego. 

Me contratei para cuidar com quatro olhos da minha pousada. Me contratei para escrever o blog A Vida Sem Crachá, livros, crônicas, contos e poemas. Estou montando uma plataforma de comunicação para dar suporte ao livro. Espero desdobrá-lo em outros livros, cursos, workshops e consultoria. Estou cumprindo à risca o plano que escrevi naquela triste quarta-feira (13 de agosto não tem como não ser um dia agourento, né?). 

Estou feliz. E é isso que aproveito para lhe desejar aqui.   


Claudia Giudice, 49, empresária, jornalista, mestre em Comunicação pela Universidade São Paulo, ex-executiva. Trabalhou por 23 anos na maior editora de revistas do país e teve seu nome impresso em todos os expedientes, com exceção, justamente, veja só, das revistas de negócios da casa. -

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